terça-feira, 3 de novembro de 2009

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À primeira vista, Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, tem a capoeira como tema – afinal, seu enredo reconstitui parte da mitologia construída a partir da vida de um dos mais célebres capoeiristas de todos os tempos, Manoel Henrique Pereira, apelidado de Besouro e cantado em todas as rodas de capoeira do planeta. Mas Besouro é mais do que isso: é obra sobre a liberdade e a autonomia, estas sim, representadas pela história de um homem que decidiu lutar por elas.

Logo no início de Besouro, Mestre Alípio pergunta a Manoel, ainda menino, quem lhe ensinou a andar. O garoto diz que foram seus pais, Alípio responde que não, que foi ele mesmo, o menino, que andar se aprende sozinho. Alípio fala de autonomia. A linguagem do diálogo pode ser simples, coloquial, popular, mas seu conteúdo anda por teses eruditas no campo da pedagogia: o conhecimento só existe quando construído, conquistado, não pode ser concedido, ensinado.
O diálogo tem consequências no pensamento sobre boa parte do que consideramos cultura popular. Nossa ideia de manifestações populares frequentemente é filtrada pela ansiedade de preservação da herança cultural, que busca a preservação de uma pureza talvez utópica pela preservação de formas, gestos, passos coreográficos, melodias. Contra essa ideia levanta-se a possibilidade de uma cultura popular como conjunto de conceitos, que transformaria as formas, gestos etc., preservando as relações que levaram à criação daquela manifestação. Dentro desta ideia, cada capoeirista (ou congadeiro, ou praticante de um folguedo qualquer), se bom no que faz, não copiaria formas, mas as inventaria – mesmo se as inventar de modo extremamente parecido com o que vê ao redor. Besouro seria, assim, um dos inventores da capoeira – tanto quanto Mestre Pastinha, que ao buscar origens e tradição construiu algo que não existiria em qualquer outro lugar do mundo, ou Mestre Bimba, que ao inventar a capoeira regional impediu que a luta/ dança/ jogo entrasse em processo de esclerosamento.

Mas as ideias sobre conhecimento contidas em Besouro transcendem o universo da pedagogia ou da preservação da cultura. Caminham também num rumo político. Uma leitura superficial do filme pode concluir que ele é maniqueísta ao demonizar os brancos e canonizar os negros. As coisas não são tão simples. Por trás da aparente barreira racial mostrada no filme (Besouro nasceu pouco depois do fim da escravidão, numa época em que até mesmo a estrutura jurídica do Brasil considerava os negros como cidadãos de segunda classe, e a cultura afro-brasileira como manifestação primitiva e eventualmente subversiva), existe uma divisão social mais profunda. E essa divisão é política, entre os que oprimem, os que consentem tacitamente com a opressão e os que resistem a ela de alguma maneira.

Em Besouro, encontraremos negros nas três categorias. Se os brancos se concentram na primeira, não é por serem implicitamente opressores, mas por deterem os meios de produção ou estarem próximos dos que os detêm. Em última instância, a luta é política e econômica, e o racismo, pelo menos em parte, é estratégia para que o dono do engenho continue dono do engenho, explorando seus trabalhadores. Há muito de Marx no filme. Neste contexto, o conhecimento do opressor perpetua a opressão, só o conhecimento do oprimido pode libertar – e daí, poderíamos passar de Besouro a debates bastante atuais, como a propriedade intelectual e a liberdade na internet.